A redenção da arte pela arte

            Isso é um desabafo honesto. Está certo que todos que me conhecem sabem que sou uma grande amante de arte, de todos os seus tipos. A música nem chega a ser algo que amo, é parte de quem eu sou. Porém, a pintura e as grandes obras sempre me chamaram atenção. A maior parte dos lugares que quero muito visitar envolvem museus e galerias de arte; quando chego a um novo lugar são estes mesmos locais que procuro saber onde estão e o que têm. Assim, quando tive a oportunidade de viajar a Paris há pouco mais de um mês, todos os dias do roteiro continham ao menos um museu (ou catedral, ou local proeminente no tema) e eu estava muito empolgada.

            É claro que não fiquei decepcionada em nenhum momento. Fui até surpreendida demais – ver as obras dos maiores artistas da história da arte europeia, conhecer outros artistas e movimentos, descobrir novos estilos… ah, e maior de todas, me apaixonar por esculturas. Tudo isso foi grandemente observado e absorvido no Louvre, no palácio de Versailles, no Orsay, no Orangerie, na Sacre Coeur, no Jardim de Luxemburgo, na saudosa catedral de Notre Dame, e até na simplicidade da Place du Tertre.

            Porém, uma coisa sim me incomodou e surpreendeu. Enquanto andava pelos infindáveis caminhos do Louvre e pelas infinitas salas do Orsay: quanta tristeza carrega a arte. Não deve ser um chute muito alto de que metade das obras retratam guerras, martírios, perseguições, assassinatos, pessoas canonizadas mortas injustamente, sofrimento de povos e de pessoas oprimidas; isso fora questões pessoais esboçadas pelos artistas que escolheram retratar nosso self. Para um dia, foi okay, mas após alguns dias isso me agoniava. Principalmente porque ao me perguntar a razão de tanta concentração nessa tristeza, notei que a humanidade tem uma triste história, a qual se repete com diferentes abordagens, mas dentro dos mesmos parâmetros de sede de poder e da corrida dos egos.

            Terminada a estadia em Paris, fui a Bordeaux, onde seria o congresso do qual deveria participar. Após os dias de intensa ocupação, hora de explorar a cidade e, como de costume, fui ao museu de arte da cidade. O que encontrei foram mais e mais pinturas retratando dor e sofrimento (parecia ainda mais que o usual); não sei se foi um julgamento parcial, mas senti até uma hostilidade na vibe daquele museu. Saí de lá pesada e chateada por estar tão incomodada e sobrecarregada (leia-se, overwealmed) por uma das coisas que eu mais gosto.

            Julguei que talvez fosse hora de dar uma trégua para a tal arte [excetuando a música, é claro] – o que fica bem difícil quando você é professora justamente de “artes finas”. Outra conclusão estranha foi a de que eu não queria mais “brisar” (maldito termo que costumeiramente usamos para descrever nosso ato de refletir ou pensar, algo que deveria ser tão normal mas quase achamos estranho ou loucura). Óbvio que deve ser muito mais tranquilo ver uma exposição de arte sem interagir com ela, apenas olhar, fotografar e dar seu “check”. É claro que eu não conseguia fazer isso, estava sempre envolvida e acabava pensando sobre todo seu contexto. Além de me cansar demais meu cérebro, esgotei minhas emoções.

            Verbalizei a frase “eu cansei de brisar” para um amigo e ele reagiu tão surpreso que tive certeza de que algo estava errado comigo. Não porque eu não queria mais brisar, as porque não era possível que aquela atividade me definisse a ponto de eu não ser reconhecida ou considerada eu mesma na falta dela. Precisava de uma pausa para coisas bem concretas, para objetividade para simplesmente explicar aquilo que é abstrato na simplicidade do que é, para dizer que se sente sem teorizar, sem buscar as respostas obscuras mas vê-las empiricamente. Era cansaço.

            Voltei ao Brasil diretamente para a minha rotina e tudo isso ficou guardado numa caixa. Eventualmente, voltando às fotos daqueles passeios, notei que aquele mal estar havia se esvaído; o trauma, talvez não. Chegou o dia da excursão de meus alunos para o MASP, meu lugar preferido de São Paulo. Estava empolgada, tendo em vista as exibições ativas, mas ainda encontrava uma seqüela de toda aquela sensação do excesso de arte na viagem. Foi ali que me redimi.

            A tenra, singela e honesta arte de Djanira me cativou. Eu a desconhecia, mas ao ver seus retratos das cenas urbanas coletivas culturais de tantos locais do Brasil, senti alegria, principalmente nos retratos de Salvador. Lina Bo Bardi já era de grande admiração minha, sua criatividade arquitetônica e coragem uma inspiração. Tarsila! Ah, que sonho! Sua principais obras ao vivo – a diversidade de traços, a antropofagia, a semana da 1922, as cenas humanas, tão humanas, eu quase chorando de uma emoção feliz. Por último, uma exibição grande que misturava o acervo do próprio MASP e do MoMA de Chicago. Mas aqueles outros três andares, tão bem sediados por coleções de obras de mulheres – aquilo não teve preço. Me senti abraçada novamente pela arte. Ganhei alguma fé de volta em ser humana, em ser gente, em fazer parte de um todo.

Quando qualquer mulher se torna uma Geni

            Esse texto é um acúmulo de várias coisas que estão entaladas na garganta há muito tempo – pensamentos provenientes de reflexões pessoais, conversas com amigas e outras mulheres, debates em ambientes acadêmicos e leituras. Não é que tenha acontecido nada específico, mas nunca é uma hora ruim para discutir feminismo. O título do texto é fruto de uma conversa com um amigo, na qual discutíamos o ocorrido com a deputada catarinense que foi fortemente atacada devido ao seu traje no dia de sua posse com palavras de baixo calão e mensagens denegrindo sua moral; quer você ache que a roupa era apropriada ou não, é preciso entender que o ponto nunca foi e nunca deveria ser “com que roupa ela estava?”.

            Diante de notícias e relatos de feminicídio, violência doméstica ou ameaças de ex-parceiros, penso a sorte que eu tive de nada dessas coisas terem acontecido comigo; mas acontecem com várias mulheres, todos os dias. Aliás, eu já tive uma amiga ameaçada por um ex-namorado. Porém, há um tipo de agressividade que me assusta bastante por ser sutil, velada, de difícil juízo praticável. Trata-se de um abuso discreto, que vem nas entrelinhas, às vezes imbuído de carinhos e palavras bonitas. São cobranças de fazer coisas indesejadas na relação; liberdades não cedidas com o corpo; tentativas de convencimento sobre fazer algo, que “não tem nada demais”; exposições e fofocas espalhadas sobre intimidades; abusos pós ingestões alcoólicas.

            A lógica machista implica uma sensação de poder sobre todas as mulheres, uma meta de alcançar suas vontades custando qualquer dose de liberdade feminina, uma facilidade de julgamento moralista que não aplicam sobre si mesmos. Resulta até mesmo na ideia de há atividades e escolhas de papeis sociais para os quais uma mulher é incompetente, que mulheres em posições de poder dormiram com alguém para chegar lá ou alcançaram somente pela beleza; ou até que filhos criados apenas pela mãe serão problemáticos. Também é essa lógica que constrói a imagem de uma mulher puritana, que se envolveu com bem menos pessoas do que seu parceiro, que é de uma família tradicional, que é maternal, que está disposta a se vestir e se comportar como apraz ao homem. É desta mesma lógica a ideia machista e homofóbica de que gays são nojentos e lésbicas são sexy.

            Repare que por muito pouco, qualquer mulher está sujeita a se tornar uma Geni. A Geni habitava a sociedade, era desejada e buscada em secreto, mas na luz do dia ganhava pedras e bosta sobre si. Sensualidade e feminilidade são exaltadas em discursos, mas na prática das relações diárias são elementos de satisfação do ego masculino e de um conservadorismo equivocado. Assim, escrever esse texto é, na verdade, desconfortável. Garotas, nós precisamos falar disso sem medo, avisar umas às outras quando o cara é problema, apoiar e proteger a mulher quando há abuso, combater aos discursos de dominação masculina. Não lute contra as outras mulheres, somos melhores quando lutamos juntas.

# Fui para Campos do Jordão – SP

            Entre os dias 2 e 6 de janeiro finalmente tive a oportunidade de conhecer  tão famosa cidade de Campos do Jordão – a cidade do frio no estado de São Paulo. No início, me senti um pouco perdida quanto ao que fazer por lá, mas aos poucos entendi a cidade e aproveitei muito a viagem.

Como chegar e o transporte no município

            A escolha crucial aqui é entre ir com seu próprio carro ou de ônibus. A empresa Pássaro Marron contempla várias cidades do estado de São Paulo e tem horários saindo da capital a cada 3 horas (opção que eu utilizei) e dois horários diários saindo de Campinas.   Esta alternativa é prática para quem quer tirar um descanso do volante e não se preocupar com dirigir na serra (como era o caso meu e da minha mãe).

            Porém é preciso considerar que, sem carro na cidade, você estará dependendo das seguintes opções: 1) Uber – tem pouquíssimos carros na cidade e o aplicativo não funciona tão bem; 2) táxi – o serviço é bem vasto por lá e os motoristas até fazem pacotes para os passeios pela cidade, mas o taxímetro lá é caro; 3) ônibus – o valor da passagem é R$ 3,50 e as rotas se estendem de uma ponta a outra da cidade, mas a frequência de horários e baixa; 4) a pé – não é uma ideia ruim, inclusive achei ótimo para vivenciar bem as paisagens, mas há vários locais bem distantes um do outro, então pode ser cansativo e demorado.

Onde se hospedar

            A lista de hotéis, pousadas e chalés e enorme com variados preços, mas não existe lugar muito barato para ficar (porém, há preços bem razoáveis, então aceite e aproveite os bons quartos e belas vistas). É importante escolher tendo em mente um dos dois fatores: 1) hospedagens no centro – facilitam a locomoção ao longo do dia e principalmente à noite, como ir a pé para vários locais; 2) hospedagens na serra – é bem mais distante, mas com carro fica bem tranquilo de ir e vir, a grande vantagem são as lindas vistas que você terá.

            Nós nos hospedamos em uma pousada na serra, era encantador tomar o café da manhã olhando para as belas serras e a natureza, além do silêncio, sossego e aconchego que se tem pelo clima. Eu e minha mãe gostamos muito de andar, então arriscamos durante o dia descer a serra a pé várias vezes (não há acostamento e é faixa simples com várias curvas), mas à noite sempre precisávamos de um táxi ou uber, já que estávamos sem carro. Porém, sem arrependimentos pela escolha do local.

Os passeios

            Na pousada nos entregaram um guia com alguns roteiros, mas sem carro parecia tudo bastante complicado então seguimos de acordo com a nossa vontade do dia. Andar pela cidade a pé ajudou bastante a encontrarmos algumas coisas mais inusitadas – locais não mencionados, cafés e bistrôs legais, etc. Porém, se você vai para ficar poucos dias, procure um guia e organize-se pelos horários de visitação (os museus e parques costumam fechar cedo, entre 16h e 17h) e priorize as manhãs, pois à tarde costuma chover e estraga os vários passeios a céu aberto.

            Os turistas costumam se concentrar bastante no Capivari, que é o centro, pois ali há uma infinidade de restaurantes (predominância para culinária alemã, com muita carne e churrascos; vegetarianos e veganos, é um pouco complicado, mas tem um restaurante sucesso chamado Alquimia). Você vai encontrar vários cafés e algumas lojas que vendem roupas de inverno por ali também. Nesta parte da cidade também se encontra o local de saída para o bonde nos trilhos (não é que esta seja uma ideia ruim, mas eu esperava mais, é algo bem simples na real), o trem que passeia pela cidade e o teleférico. O Capivari costuma ser o local mais indicado para os turistas, tem aparência das cidades européias, lembra um pouco Gramado, mas não se engane, Campos do Jordão não se resume àquilo.

            O que mais me encantou na cidade foi subir nas partes mais altas e ter a vista das serras – é lindo. Para isso, você tem o Pico do Itapeva, a Vista Chinesa, a Pedra do Baú e outros cantos que você achar no caminho. Vale muito a pena conhecer o Museu Felícia Leirner (um lindo encontro entre natureza e arte) e o Palácio da Boa Vista (o palácio do Governador); estes dois locais são próximos, gaste umas 2h e 1h, respectivamente, e terá um bom aproveitamento. Falando em natureza, meu passeio preferido foi o Jardim Amantikir, tire no mínimo 2h para passar ali dentro – muito propício para fotos, vistas incríveis e conhecimento sobre a natureza de diversas partes do mundo. Há ainda o Museu da Xilogravura, o Monastério, o Horto Florestal e pesqueiros para conhecer. E, se você gosta muito de chocolate, várias lojas oferecem visitação para a fábrica, mas a mais interessante é a Araucária. O tour da cervejaria Baden Baden também costuma ser bastante recomendado para quem aprecia, mas a visita precisa ser agendada com antecedência.

            Em suma, se você pretende passar apenas de 3-5 dias, é preciso uma boa organização com o tempo e a logística das distâncias para ter um bom aproveitamento, meu conselho seria para escolher os locais de acordo com o interesse de vocês e usar o tempo diurno para os passeios ao máximo. Passar uma semana em Campos deve proporcionar bem mais tranquilidade aos passeios e permitir que se veja tudo na lista dos roteiros.

            É um tipo de viagem bastante adequado para família e casais, principalmente se o objetivo for ter descanso. O clima, as paisagens e o estilo da cidade são muito propícios para desanuviar a mente e lhe convidam a internalizar as experiências.

 

A legitimação do espaço da mulher no campo da música

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Foto de Clara Schumann, pianista e compositora no século 19, conhecida também por ter sido esposa de Robert Schumann

O capítulo “A performance musical e o gênero feminino”, de autoria de Catarina Domenici, traz à frente uma interessante temática sobre a representatividade feminina na música erudita. Tal discussão é coincidente com tensões sociais presentes que buscam um patamar de equidade no acesso e nas oportunidades das mulheres em todo e qualquer espaço de atuação na sociedade, entendendo que o papel da mulher foi carregado de signos que deixaram-na em segundo plano em relação à figura masculina. Outro objetivo da luta feminista é combater a violência à mulher – bastante expressa em números no nosso país. Embora neste trabalho a violência física não pareça concernente, certamente é possível falar de violência simbólica. No escopo deste texto, portanto, é objetivo falar “do campo ‘música e gênero’ no Brasil como um campo em emergência, heterogêneo, híbrido, múltiplo, construído coletivamente, como em uma ‘onda’ de publicações e práticas, que vem emergindo e sendo gradativa e socialmente construído no macro campo do conhecimento da música” (ZERBINATTI, NOGUEIRA, PEDRO, 2018, p. 2).

De acordo com a autora, “o ideal de fidelidade à obra que ainda norteia a ética da performance musical encontra um paralelo perturbador com a condição de passividade e submissão prescritas ao gênero feminino no século XIX” (DOMENICI, p. 89). Ela ainda se utiliza de Sheperd (apud DOMENICI, p. 92-95) para construir a ideia de que a figura feminina foi colocada como dócil, objetificada, tal qual a natureza, sob controle e domínio da figura masculina, patriarcal. A atitude feminina ante a partitura, sendo esta posta como autoridade (o texto, a obra do compositor), torna-se cabível como performer – aquela que irá passivamente seguir precisamente o que está escrito.

Entra-se, no entanto, num paradoxo – o de satisfazer à necessidade do compositor e da música, dentro de tal limitação de submissão ao texto, uma vez que é preciso, em tantas vezes, transcender a música e o próprio espaço, e isto é feito através do corpo. “O corpo do músico existe como uma intrusão, uma penetração no espaço do quadro, mas também como uma desculpa”, (LEIPPERT, apud DOMENICI, p. 96).  Isso nos leva a notar que “a união entre som e visão encarnada no corpo sonoro arrisca desviar a atenção da obra para a performance, deslocando a autoridade do compositor para o performer” (DOMENICI, p. 96). A partir deste ponto, a autora discute a sensualidade do corpo e um aparente incômodo encontrado ao este ser esboçado pela figura feminina como intérprete, gerando reações negativas da crítica e do público, ao passo que a figura masculina não parecia apresentar ameaças neste sentido. A seção final do trabalho dedica-se a comparar a imagem dos violoncelistas Mischa Maisky e Jacqueline Du Pré, e dos pianistas Lang Lang e Martha Argerich (DOMENICI, p. 102-105), notando bem menos rigor no julgamento às expressividades corporais dos intérpretes masculinos.

A partir de tais considerações, é possível considerar atitudes a serem tomadas que possam aparar tais arestas na imagem da mulher construída na música erudita, a qual é produto do papel feminino construído na sociedade. Alguns exemplos seriam a atribuição de cargos de confiança a musicistas nas orquestras tais como spalla, chefes de naipe; também a consolidação da figura da maestrina, uma vez que nota-se uma ocupação bem mais baixa de mulheres até mesmo nas universidades nos cursos de Regência, bem como no de Composição e Arranjo; nesse sentido, faria bem que os programas de concerto contemplassem mais repertórios de compositoras, brasileiras e estrangeiras; é preciso também que haja incentivo e afirmação por parte dos maestros, principalmente em instrumentos e grupos nos quais é menos comum a participação de mulheres, como é o caso dos metais graves e das Big Bands.

Estes são apenas alguns exemplos de ações que quebrariam padrões resultantes de associações sígnicas imputadas aos papeis de homem e de mulher conforme a construção social se deu no campo da música erudita (na música popular, haveria ainda outros fatores com mais preconceitos a serem considerados). O trabalho de Zerbinatti, Nogueira e Pedro (2018) destaca ainda a importância de fortalecer e aumentar as pesquisas referentes ao campo de música e gênero, bem como a criação de mais grupos de pesquisa específicos. Cita, ainda, festivais e eventos que contemplem as mulheres de maneira enfática e se dediquem, por exemplo, às compositoras e ao reconhecimento de figuras femininas, do passado e do presente, na música.

            Por fim, entendemos que é necessário legitimar o campo de música é gênero na academia, onde será exposto a “desconstruções epistemológicas, mudanças de paradigmas e criações de espaços de (r)existências (ZERBINATTI, NOGUEIRA, PEDRO, 2018, p. 10).” Assim,

Visibilizar a emergência do campo de música e gênero como campo científico é, também, estratégia de resistências, de refrações e de retraduções das pressões e imposições externas ao campo a fim de que seja possível o reconhecimento de suas próprias determinações e possibilidades (ZERBINATTI, NOGUEIRA, PEDRO, 2018, p. 10).

           Este ensaio, enfim, é apenas o começo de uma inquietação e a entrada numa luta.

 

Referências

DOMENICI, C. A performance musical e o gênero feminino. In: NOGUEIRA, I.; FONSECA, S. Estudos de Gênero, Corpo e Música: abordagens metodológicas. Goiânia/Porto Alegre: ANPPOM, 2013.

ZERBINATTI, C. D.; NOGUEIRA, I. P.; PEDRO, J. M. A emergência do campo de música e gênero no Brasil: reflexões iniciais. Descentrada, v. 2, n. 1, março 2018.

Sobre a brevidade da vida

Se existe um texto que sempre me intrigou foi Eclesiastes. Embora haja uma divisão de 12 capítulos, mais me parece uma sequência de divagações e desabafos vindos de uma profunda reflexão que pode ter acontecido ou dentro de poucos dias ou ao longo de anos. O livro bíblico escrito por Salomão sempre foi tudo por mim com um sentimento paradoxal, traz incômodo e paz. Incômodo por lembrar da fugacidade da vida, paz porque tenho tantas das inquietações descritas ali.

É fato que a filosofia, desde seus primórdios, nasceu e se desenvolveu mediante as perguntas existenciais mais básicas do ser humano: quem somos, de onde viemos, para onde vamos. Em Eclesiastes, no entanto, a palavra que costuma ser enfatizada pelos leitores do texto é vaidade – “tudo é vaidade”. Porém, pareceu-me, recentemente, que existe uma outra problemática envolvida nessess escritos filosóficos de Salomão. Ao identificar que tudo é vaidade, que não há nada de novo debaixo do sol e que as vivências na terra tendem apenas a se repetir, o rei oferece questionamentos existenciais com profundidade suficiente para evocar os maiores temores de uma vida.
– “O que o homem ganha com todo o seu trabalho em que tanto se esforça debaixo do Sim?” (1:3);
– “Eu queria saber o que vale a pena, debaixo do céu, nos poucos dias da vida humana” (2:3);

Além disso, ao longo do capítulo 2, há uma aparente comparação entre como o tipo e o sábio vivem, porém enfatizando que ambos terão o mesmo fim. Tendo tais observações em mente, a real pergunta do considerado homem mais sábio do mundo que ressoa aqui é: como devemos viver diante da iminência da morte?

Nas últimas semanas, a morte era como um fantasma que eu suspeitava me rodear, com tantas perdas de pessoas próximas a mim em pleno mês de janeiro. Essa visita frequente do fim da vida acabou me levando a pensar exatamente em qual a melhor maneira de viver a vida. O que realizamos nessa breve passagem que fazemos pela Terra?

Pode parecer uma grande injustiça, mas não é possível ser “café com leite” na vida. Mal percebemos e, de repente, nos tornamos responsáveis por tudo que fazemos e deixamos de fazer. E, de fato, o somos desde sempre, e a tendência é que essa realidade seja olhada como um fardo demasiadamente grande. Talvez por isso tanta gente prefira viver como se não houvesse amanhã, fazer tudo que lhes der vontade. Uma fuga bem agradável – se a morte vier, pelo menos se vai feliz. A verdade é que temos tanto a fazer e resolver no período chamado vida… e o tempo nos escapa dos dedos.

A visão bíblico-cristã oferece algumas alternativas norteadores de um rumo para o viver. A vida é Cristo, Ele é a fonte e, portanto, atribuidor do significado desta, bem como do sentido que ela toma em nós individualmente. Salomão discorre que ele nada negou a si mesmo daquilo que desejou, e mesmo assim considerou tudo vaidade e correr atrás do vento. Disse estar convencido que o melhor para o ser humano é comer, beber e aproveitar o resultado adquirido de seu trabalho árduo, pois “isso é dom de Deus”, mas também nos lembra, ao encerrar o livro, que de tudo prestarmos conta no dia do juízo.

Retornando à pergunta que não quer se calar: o que fazer diante da iminência da morte? A escolha de viver sem pensar também é uma opção, é claro. Mas a própria vida irrefletida é uma fuga, uma anti-vida, uma outra forma de morte. Certamente, se nos foi concedida a capacidade de reflexão, o ato de não usarmos é praticamente rejeitar uma habilidade e dom que Deus nos deu. Em tantos vieses de possibilidades, nos prendemos muito, como cristãos, a certos e errados, e pouco lembramos do que realmente importa: de onde viemos, para que estamos na Terra e para onde vamos. Não sei como encerrar um texto de tantos devaneios e inquietações que não cessam. Apenas sinto a necessidade de encontrar melhores maneiras para a razão de viver.

10 Coisas que uma ansiosa quer dizer para outros ansiosos

  1. Sua saúde é mais importante. Sempre. Não importa o tamanho da sua checklist, manter a sanidade mental, a boa alimentação e algum sono é o que vai te segurar pelos dias tenebrosos.
  2. “To do Lists” (“Lista de coisas a fazer”) podem realmente ser úteis; porém, se elas começarem a te deixarem ainda mais ansioso: a) inverta a lista, mude para “lista de coisas feitas” e você se sentirá melhor, inclusive coloque as coisas mais bobas, como ‘levar o lixo lá fora’; b) em casos de extrema ansiedade por causa de uma f****** lista, dane-se a lista, amasse e jogue-a fora, acredite que sua cabeça funciona.
  3. Na medida do possível, esteja plena para os piores dias. Tenho notado que, por mais acabada que eu esteja e mais bagunçada a rotina, estar arrumada me faz sentir melhor. Claro, se não for possível, ao final de uma fase ruim, se dê de presente um dia de muitos cuidados pessoais.
  4. Por pior que esteja seu dia lotado, inclua na rotina coisas que realmente te agradam e te relaxam: um episódio de seriado, demorar mais para tomar uma refeição, ligar para alguém, ler um livro, fazer as unhas. Permita-se ter um momento inútil, visitar aquela caixa do nada.
  5. Resolva primeiro o que for iminente para o dia, o resto vai se organizar de alguma maneira.
  6. Descubra qual a melhor estratégia para você realizar suas tarefas: fazer tudo de uma vez o mais rápido possível, distribuir um pouco por dia. É importante conhecer, entender e aceitar como sua mente e corpo funcionam.
  7. Quando você der pane, chore, grite, deixe extravasar. Depois, respire, se recomponha e comece seus afazeres das menores coisas. Resolver coisas simples reconstrói nossa autoconfiança.
  8. Não tenha vergonha de contar para alguém que você está ansiosa, surtando ou passando por dificuldades. Há mais pessoas passando pela mesma situação. Dica: pessoas ansiosas entendem/respeitam outras ansiosas.
  9. Avalie os resultados ruins que podem vir de algo não ser feito; você vai perceber que provavelmente eles não serão tão desastrosos assim.
  10. Quebre suas próprias regras. O mundo não vai acabar por isso. Certamente você tem manias, hábitos e limites que impôs a você mesmo, mas viva de maneira mais leve.

E, lembre-se: Você não é definido pelo que é capaz de fazer ou concluir; você se define pelo que é. Então, se não der tudo certo, não tem problema.

Crônica dos espaços e tempo compartilhados

            Hora do almoço numa cafeteria franqueada, dirigida para classes AB, região nobre de Campinas; o fluxo é contínuo. Após ter transitado pelo espaço, desde a fila até os balcões, sento-me sozinha numa poltrona encostada às janelas. Porém, ao invés de encarar a rua, prefiro observar o ambiente e as pessoas que a ali pertencem por aquele espaço de tempo.

            Na fila, um grupo de três mulheres jovens, bonitas, bem vestidas – deveriam ser de algum escritório – falavam sobre rapazes com quem saíam. “Ele me disse que se eu priorizava meu trabalho ao invés da família, ele não era a pessoa pra casar comigo,” disse uma das moças, parecia ser a mais sentimental. As amigas faziam objeções, sinalizando que era uma desculpa mal elaborada do sujeito e que ele não a merecia.

            Um grupo de alunos de um colégio de classe alta se aglomerava à minha frente, uns seis ou sete meninos tentando escolher seus pedidos. Os assuntos misturavam matérias escolares, jogos, vídeos da internet – e eu apenas gostaria que eles se apressassem no caixa. Também me perguntava quando nessa idade eu teria como opção almoçar numa cafeteria tão cara e comer qualquer besteira. Pedi ajuda para alcançar um canudo, eles não me atenderam, estiquei o braço empurrando os garotos que tinham meu tamanho e, tendo conseguido o artefato, sentei-me. Havia mais umas meninas da mesma escola, umas três, sentadas na parte de fora. Aquela idade dos clubinhos separados por gênero.

            Na mesa à minha frente sentava um grupo de quatro asiáticas, comunicando-se em seu idioma, o qual eu julguei ser mandarim, mas poderia facilmente estar errada. Com ar de bem sucedidas, pareciam bem entrosadas, riam e bebiam seus cafés. Senti certo desgosto pela barreira idiomática, impedindo-me de bisbilhotar a conversa. Meus olhos se dirigiram subitamente para um grupo de três rapazes de muito boa aparência, mas não consegui decifrar muito a respeito deles e logo perdi o interesse.

            De repente, meus ouvidos captaram palavras aflitas ao meu lado direito. Um homem de traços japoneses, aparência jovem, com seu notebook aberto, se apertava ao celular com fone num diálogo tenso. “Você não entendeu! Eu quero perguntar! Deixe-me perguntar! Quero perguntar! Me ouça, me ouça!”, ele repetia e gaguejava. Foi possível compreender que se tratava da mulher com quem se relacionava. Aquele não parecia o melhor momento para a discussão, mas definitivamente, naquele espírito, ele não conseguiria cumprir seus afazeres. Tive pena dele, sem sequer saber se ele era culpado ou vítima – se é que se pode categorizar dessa forma.

            Terminei meu salgado, minha bebida, retornei ao caixa para pegar uma sobremesa. Interagi com mulheres desconhecidas que discutiam sobre um sabor novo de café ser bom, ao qual afirmei que sim. Peguei o meu pacote e saí apressada porta afora. Celular sem bateria, poderia apenas imaginar o horário e tinha certeza que estava atrasada. Os rapazes bonitos andavam em passos lentos à minha frente. Beirando a impaciência, desviei deles e segui rapidamente.

            Enquanto andava, refleti sobre o pouco tempo e espaço que dividi com aquelas pessoas – elas, de tantas histórias diferentes, eu com tantos enredos para mim mesma. Pensava em como aquele espaço que se aparenta fixo torna-se volátil pelo andar constante do tempo. Num segundo um entra e em outro sai, já não faz mais parte dali e o que se viveu ali, ali fica. Se a atmosfera compartilhada com as gentes desconhecidas serviriam para causar reflexões ou apenas para aumentar dados na memória imediata. Será que calada em meu passar pela loja, comunico-me contigo?

A Sonata a Kreutzer, Lev Tolstoi – entre o delírio e o moralismo

Um dia mostrei um texto meu para um amigo a quem admiro muito e que considero bom escritor. Apesar da boa devolutiva a respeito do que leu, um comentário seu me pegou: “tudo que você escreve tem muito de você, tanto nos contos quanto nas poesias. Isso não é ruim. Mas escritores mais maduros conseguem se colocar fora do texto e criar outras personas para escrever. Logo você chega lá.” Refleti muito e, ainda com conclusões dúbias, anos depois, me deparei com uma literatura de um dos grandes – “A Sonata a Kreutzer”, de Lev Tolstoi.

            A narrativa parece ter sido um easter egg na vida de pessoas separadas por séculos, uma espécie de dèja vu histórico. Conta-se que quando Beethoven escreveu a sua sonata n. 9 para violino e piano, convidou um violinista menos conhecido chamado George Bridgetower, filho de uma polonesa com um negro ex-escravo das Antilhas, para ser o solista junto consigo. A parte foi entregue poucas horas antes do concerto e é dito que sua performance foi tão fascinante, a do violinista, que o compositor em dado momento levantou-se do piano e foi saudá-lo após ter executado brilhantemente algo inesperado. Porém, em outra noite, enquanto bebiam e falavam de mulheres, um comentário de Bridgetower sobre uma dama conhecida a Beethoven o enfureceu. Pegou a partitura e mudou a dedicatória, que antes fora ao solista, e passou-a a Rudolphe Kreutzer, o qual nunca chegou a tocá-la em público pois disse que era demasiada difícil.

            O filho de Tolstoi escreveu que essa sonata importunava fortemente a seu pai. Interessante é que a narrativa criada com o título da peça é na verdade uma projeção de toda a raiva vivida neste assunto. Sua esposa apresentou-se ao piano acompanhando um violinista, com quem ele sempre suspeitou que ela mantivesse um affair.  Numa apresentação fechada para alguns amigos, questionou até a um amigo sobre essa impressão e diz-se que nunca sanou essa dúvida, tampouco ouviu em paz a tal sonata. O tom de delírio lembra o Casmurro, de Machado – a eterna dúvida e as evidências que lhe pareciam tão óbvias – tendo apenas um lado da história.

            Assim, se de antemão já se souber em que foi baseada a narrativa, você já terá uma grande ideia do rumo que ela irá tomar, do que será discutido e até mesmo dos argumentos que o ator do enredo usará para convencer seu interlocutor e leitor da veracidade da sua narração. Além disso, logo no início da trama, o suspense e o pavor quanto ao resultado do ciúme já é eliminado quando o próprio personagem conta como terminou sua tragédia. A envolvente descrição psicológica e tantos outros detalhes é o que tornam o livro uma obra recheada de devaneios e de leitura agradável. Finaliza abruptamente, o que parece ser uma abertura ao leitor, porém, não necessariamente  apenas para decidir se é convincente sua história, mas da moralidade de suas atitudes.

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Hipocrisia

Somos, de todas as raças, a mais hipócrita. Fingimos estar felizes quando estamos tristes. Agimos por educação mesmo quando estamos incomodados. Inventamos desculpas para recusar convites. Vestimos máscaras variadas para as situações sociais às quais somos expostos. Construímos interações que vão de óbvias a bizarras nas redes sociais, as quais em nada precisam fazer jus à realidade do que se vê, se sente ou de como se está.

Além disso, agimos de uma das formas mais estranhas já vistas nesse planeta: lutamos contra nossa própria espécie. Cometemos crimes assustadores. Preferimos outros animais a outras gentes, que são gente como a gente. Escolhemos até máquinas e tecnologias no lugar de outros humanos. Se possível fosse, viveríamos sós, ou com o grupo menor de pessoas convenientes que conhecemos. Temos pavor do diferente.

Para falar bem a verdade, como diz Jean Baudrillard em A Troca Impossível, lutamos até contra nós mesmos como indivíduos, pois não aceitamos quem nós somos. Detestamos tanta coisa na gente: “nossos, desejos, faltas, neuroses, sonhos, desvantagens, vírus, delírios, nosso inconsciente e mesmo a nossa sexualidade”, o problema é que são justamente esses supostos defeitos ou ruídos que nos tornam “demasiadamente humanos” [p. 40].

Talvez seja por isso que admiramos tanto a máquina. Ela não falha e, se vier a falhar, vai haver outra igual ou melhor para substituí-la. Quem nos dera pudéssemos nunca falhar, sermos perfeitos, funcionarmos ininterruptamente para qualquer atividade, ter um duplo de nós mesmos quando nos quebrássemos. Mas não é assim.

Nisso reside a beleza de ser humano, a de estar aí no mundo, aberto a tanto que existe. Melhor seria se aceitássemos as incertezas como uma oportunidade de arriscar, viver com emoção. Se não tivéssemos medo de estarmos errados, porque aprender é prazeroso, ainda que dolorido. Se aceitássemos as estranhezas de quem nós somos, para poder decidir o que queremos mudar, o que vai e o que fica. Seria ótimo, não seria?! Se não tivéssemos medo nem da gente toda e nem da gente mesmo.

O ato heroico

Às vezes chegamos ao nosso limite. Para algumas pessoas demora mais, ou demora menos; para cada um há uma área da vida em que isso se torna mais complexo ou que é mais tranquilo. Mas o fato é que nos cansamos. Eu, particularmente, me canso de tudo que se repete demais, principalmente de coisas ruins – porque até as boas, chega um momento em que elas deixam de nos nutrir com o que é realmente necessário.

O fato, porém, é que algumas situações vão nos tirando casquinhas, lascas, que no começo parecem não nos ferir, até que deixamos pedaços grandes de nós ir embora e nem notamos o quanto já sofremos. Aí vem o ato heroico. Um grande desespero por nos livrar das coisas, para colocar um fim naquilo que está nos machucando, ou para mudar abruptamente uma circunstância em que estamos vivendo.

O ato heroico nem sempre é um ato de coragem, ele pode muito bem ser de covardia. Quantas vezes decidimos simplesmente pela escolha de uma fuga dos problemas ao invés de buscar a solução deles. A pergunta é como determinar se é coragem ou covardia, se é fuga ou é solução? Se quer saber minha opinião, não é da conta de ninguém essa decisão do outro. É claro que amigos servem para se preocupar, garantir o apoio e mostrar que estão lá para o que der e vier, mas apenas o estar na pele do outro faria você entender uma escolha surpreendente.

Tem aquele outro tipo de ato heroico, aquele quando você se entrega e decide fazer qualquer coisa para alcançar algo desejado. Infelizmente, contudo, há momentos em que o controle nos escapa das mãos e essa talvez seja a coisa mais difícil de se aceitar. Às vezes é preciso deixar ir, soltar a corda do balão, colocar tudo num baú e enterrá-lo em algum lugar [quem sabe, guardar um mapa para tal], ou simplesmente se afastar.

Acredito que não existem decisões fáceis, principalmente quando elas envolvem mudanças ou um lançar-se para o desconhecido. Penso que o mais importante é estar o mais ciente possível das conseqüências. Porém, quer seja para correr loucamente atrás do seu sonho ou para mudar um pensamento pessoal; quer seja para interromper um ciclo que lhe faz mal ou para abandonar algum hábito errado, é preciso um ato heroico e este é de responsabilidade inteiramente sua.